Confederação Brasileira de Golfe

Sobre ninfas e faunos

10 de agosto de 2011

Em fevereiro de 1925, o filósofo espanhol José Ortega y Gasset almoçou em um campo de golfe de Madri. Alguns amigos conseguiram convencê-lo a abandonar temporariamente seu escritório e suas profundas reflexões sociais e políticas que, cinco anos mais tarde, desembocariam no clássico A Rebelião das Massas. Naquele dia de sol, a convivência com golfistas tocou o coração desse pensador liberal; e deu a ele uma peculiar inspiração que o levou a escrever uma prosa poética sensível (embora irônica) e tingida por insights espirituais e morais, os quais se traduzem na associação de figuras míticas com a antiga sabedoria hindu e a mentalidade burguesa. Ao fim de tudo, mesmo sem ser golfista, Ortega y Gasset atingiu o âmago de um jogo que é possível ser jogado a vida inteira sem, no entanto, conseguir penetrá-lo. A seguir, a íntegra do admirável texto do filósofo, publicado originalmente sob o título Conversación en el Golf o la Idea del Dharma.

 

 

 

 

 

 

 

Nesse radiante meio-dia de fevereiro, alguns jovens amigos me tiram de minhas ocupações habituais e me levam ao golfe. Nós vamos almoçar entre carvalhos, banhados pelo influxo solar e diante da bruma azulada das serras. 

A escassa higiene de minha vida é motivo de preocupação para esses amigos tão afetuosos. Para eles, que vivem quase todos os dias ao ar livre, ocupados com maravilhosos ritos musculares, é angustiante saber que passo meu tempo fechado em meu escritório, submergido na mágica névoa de fumaça de meus cigarros, e tendo como única ligação com a paisagem da região a sutil e metafórica proximidade que há entre as folhas de meus livros e as folhas das árvores. Eu me deixo arrebatar por eles, com uma doce lassidão, como se fosse um cenobita surpreendido pela passagem de um festivo grupo de ninfas e centauros. Sempre gostei de poder participar, por algum tempo, de outros universos, protegido pela certeza de mais tarde poder retornar ao meu próprio mundo. Enquanto o carro vai exercitando seus amortecedores e as casas e as árvores passam vertiginosamente por nós, como que arrebatadas por um urgente destino contrário ao nosso, me preparo para me deliciar, uma vez mais, com os diáfanos prazeres de um almoço de golfe. Tenho a impressão de ver sair dos arbustos, subitamente, um fauno de pullover; e atrás dele vem uma ninfa bronzeada, com seus cabelos soltos ao vento, enquanto se concentra em arrumar a saia. Logo em seguida, emerge da mata um ogro contratado, carregando uma bolsa, que é a última manifestação de um velho símbolo erótico, onde as flechas de Vênus foram substituídas pelos tacos de golfe.

Não há dúvida: esse lugar é encantado, e situa-se em uma dimensão extraterrena, na qual se conserva parcelas de todo o melhor; do melhor e impossível: é um pouco do Paraíso em perfeita combinação com outro pouco do Olimpo. De fato, a aparição daquele par de jogadores em meio à fresta de luz da floresta nos remete, irremediavelmente, à imagem de Adão e Eva antes do pecado, embora já tão próximo dele. Noutras vezes, é apenas Diana sozinha que invade nosso campo visual, perseguindo não se sabe que peça insubstituível; e fica gravado em nossa memória o movimento elástico de seu tornozelo comprimindo a terra em um giro rápido e preciso. Tudo isso flutua em eterna indecisão entre sonho e realidade, fugindo da existência cotidiana sob proteção de forças mágicas não identificáveis.

A refeição foi servida numa mesa na varanda do chalé. Estou sentado entre duas ninfas; e à minha frente está um fauno, o mais amável de todos os faunos. Prontamente, advirto a todos que pertenço a uma espécie zoológica evidentemente distinta. Uma espécie menos graciosa, menos integrada à paisagem, menos saudável. Esses seres que me cercam são criaturas de luz, quase livres das restrições da gravidade, nascidas para deslizarem sobre o planeta sem esbarrarem em labutas sombrias.

O sol busca a pequena orelha da ninfa sentada à minha esquerda, e a trespassa voluptuosamente, deixando-a transparente. O enorme astro triunfa prodigiosamente e derrama sua fantástica abundância com uma confiança que leva diretamente à convicção de sua inesgotabilidade. Sob a influência de seus raios, tudo se transforma em ouro, especialmente a torta que acabam de servir, que, de tão autenticamente dourada, nosso apetite quase se transmuta em avareza. “Que belo dia de sol!”, exclamou uma das ninfas, fazendo um delicioso gesto, com o qual podia mostrar uma joia de família, legado das mais velhas heranças. “Eu não compreendo como você pode viver sem tomar sol”, me diz a outra. “É que eu não vivo, minha senhora”, respondo. “Pois então, o que o senhor faz?”. “Eu observo a vida dos outros”. “Mas isso é um verdadeiro martírio, não é, meu amigo?”, exclama a ninfa mais sensível, loira, loira como uma corda de violino, e, como ela, também capaz de intensas vibrações. “Não há dúvida; apenas observar os outros viverem é um martírio.

Mas mártir quer dizer testemunha. Eu dou testemunho de sua existência, eu atesto que é você que, nesse exato momento, está prisioneira dos raios solares, quase um mito perfeito; e que é autêntica a gola de leopardo que enfeita seu casaco, a ponto de eu lamentar não ter trazido arco e flechas, já que agora me deu uma vontade enorme de caçar… Sou uma testemunha da grande maravilha que é esse mundo e as criaturas que o habitam. E não é uma missão desprezível, ninfa amiga! Se não existisse alguém que atestasse a existência das demais coisas, seria como se elas nunca tivessem existido. Veja só: nesse instante, as pessoas que nos rodeiam, os comensais nessas mesas à nossa volta, todas as pessoas que entram e saem, que se juntam e se separam nessa varanda banhada pelo sol – todos eles estão ocupados em cada qual viver a sua própria vida. Ninguém está atentando para o fato de que a sombra emanada pela pilastra acaba de cobrir o seu belo rosto. As radiações de luz em várias gradações que estão em volta não são suficientes para iluminar perfeitamente suas feições escurecidas; filha do sol, como só pode ser uma princesa inca do mais puro sangue, você acaba de naufragar e se fundir com as forças da escuridão.

E como se fossem restos de uma catástrofe, essa fluída escuridão nos oferece apenas três detalhes de tudo o que te compõe, três detalhes de uma mesma cor: o branco das pérolas que enfeitam seu pescoço; o branco dos seus dentes; e o branco dos seus olhos. Essa tríplice radiação de brancura, trocando forças entre si, gera nesse exato momento um ritmo absolutamente puro, absolutamente supérfluo, é certo; mas, sem dúvida, também o mais valioso dos acontecimentos desse exato momento nesse canto do planeta. Se eu fosse prisioneiro de minha própria vida, jamais teria notado essa preciosidade. Porém, acabo de cumprir minha alta função de testemunho; e, assim, essa realidade tão graciosa quanto fugaz, está eternamente salva. Todos nós conservaremos para sempre a recordação de seu suave naufrágio nas sombras. Homero dizia que os heróis combatem e morrem apenas para depois serem cantados pelos poetas. Nesse sentido, eu digo que a senhora existe na medida em que eu dou testemunho da sua existência. Por outro lado, esse vinho no qual acaba de cair um pedacinho de sol, é excelente.”
 

“Vejo que você é um mártir agressivo e galante, e com uma boa eloqüência. Quase me arrependo de ter sentido, a menos de um minuto atrás, certa tristeza pensando em sua vida sem sol.”.
“Brincadeiras à parte, Alicia, devo confessar a você que até ontem eu próprio não sabia por que tinha abdicado do sol. Desde ontem, sei que ajo assim para me acostumar à sua desaparição.”

“Como assim, se acostumar com sua desaparição?”

“Ontem ouvi falar do interessante trabalho de um físico inglês chamado Sir James Jeans. Ele acaba de publicar um estudo demonstrando uma nova hipótese sobre a origem dos sistemas solares. Segundo ele, é errada a ideia de Laplace, que imagina cada sistema solar como uma pacífica nebulosa, pouco a pouco solidificada, da qual depois se desprendem os planetas. Jeans acredita que todo sistema solar nasce do choque entre dois gigantescos corpos siderais. Dessa colisão, um corpo arranca do outro farpas incandescentes que se põem a girar perdidas pelo espaço. Depois, elas se segmentam em grupos, formando o sol e os planetas. Esses choques se produzem, inexoravelmente, a cada dois bilhões de anos. Não falta muito para que esse choque volte a ocorrer, e que o golfe desapareça. E quando isso acontecer, tudo será apenas trevas. E eu, precavido que sou, estou apenas me habituando à escuridão com alguma antecipação.”

“Mas quando esse choque deve ocorrer?”

“A daqui exatos um bilhão e cem mil anos.”

Nesse momento, chega até nós um grupo de jogadores de ambos os sexos. Todos se cumprimentam de modo informal, segundo o privilégio olímpico. Falam das partidas da tarde que estão por começar. Percebe-se que nesse universo mágico que é o golfe, o ato de empunhar um taco e bater em uma bola é envolta em uma dignidade suprema, e isso basta para dar sentido à existência. Então, o benévolo fauno sentado à minha frente, pleno de simpatia por mim, fez a proposta essencial: “Você deveria se associar ao clube e jogar golfe diariamente”.

“Não, meu amigo, não posso ser sócio desse clube e nem jogar golfe. Isso me acarretaria castigos por incontáveis séculos.” “Isso implica uma grave acusação contra nós”, replicou o fauno exemplar.

“De modo algum. Se você não jogasse golfe, você incorreria no mesmo pecado que o meu. Ambos estaríamos contra o nosso dharma”.

“Ah, o dharma!”, exclamou a ninfa perspicaz, enquanto mesclava seus lábios rubros com o rubro da sua taça cheia de Borgonha, na qual o sol se diluía. Por trás desse dharma, suspeito que tem toda uma teoria pronta. Vamos a ela; melhor já do que depois. Com os petiscos vieram as brincadeiras; depois com a salada vieram os galanteios; e agora que vão servir o assado, chegou a hora da substância: a teoria! Ninguém aqui poderá negar que a alimentação está numa lógica perfeita.”

“Cara Alicia, não é, na verdade, uma teoria. Se trata mais de uma suspeita e de um modo de sentir que tem mais de trinta séculos de existência. É algo que está resumido na antiguíssima sabedoria de todo o continente asiático, em sua gigantesca experiência do mundo e da vida.”

“Você disse Ásia?”, interrompeu a ninfa audaciosa, “Morro de amores pela Ásia inteira; meu interesse é continental. Em Biarritz li sobre Confúcio; e meu coração sempre oscila entre Buda e Gengis Khan.”

“Alicia, vamos, por um momento, deixar seu coração de lado; pois ele é tão maravilhoso que nos levaria longe demais, arrastados pelas suas geniais oscilações. Com a ideia de dharma quero apenas dizer que pode ser um erro considerar a moral como um sistema de proibições e deveres genéricos; ou seja, que são os mesmos para todos os indivíduos. Isso é uma abstração. São muito poucas as ações, se é que há alguma, que são absolutamente boas ou absolutamente más. A vida é tão rica em situações diferentes, que não é possível encerrá-la dentro de um único perfil moral. Em Paradoxo Sobre o Comediante, o pensador Diderot sugere, paradoxalmente, que a moral consiste em um conjunto de imoralidades profissionais. O bispo vende suas bulas, e o faz muito bem. O comerciante engana o freguês, e também está tudo certo. A imoralidade começa quando o comerciante vende bulas, e o bispo começa a alterar os pesos da balança na qual o freguês deposita as mercadorias. Essa brincadeira de Diderot oculta uma grande verdade. Notem que cada profissão tende a considerar imoral os procedimentos das outras. O intelectual tende a considerar imoral o político, porque suas palavras são inexatas, insinceras e contraditórias. O intelectual tem uma missão enunciativa, verbal. Quando ele escreve ou diz algo com as palavras exatas e precisas, demonstrando lógica e graça, ele fez bem o seu trabalho; a realização não lhe interessa. Por outro lado, o político aspira apenas a realizar seus pensamentos, não a verbalizá-los. É, pois, sua obrigação não dizer o que pensa, não espalhar aos quatro ventos o que se passa em sua cabeça; seu mandamento não é lírico. A mentira, para o político, e pelo menos dentro de um limite bem amplo, é um dever. Encontramos a mesma discrepância de valores morais entre as classes sociais. Aos olhos das mulheres da pequena burguesia, vocês, elegantes damas aqui sentadas, são a verdadeira representação do demônio. A pequena burguesa acredita que a mulher veio ao mundo para ficar em casa e não fumar. Ela tem uma moral feita quase inteiramente de proibições, e sua grande virtude consiste, sobretudo, naquilo que não faz. E assim tem acontecido sempre. Nas tumbas da antiga Roma republicana, encontram-se muitas inscrições de elogio às mulheres lá enterradas: ´Domiseda, lanifica´, que significa: Ficou em casa, costurando. “

“Eu não me sabia tão escassamente romana!”, disse a ninfa do naufrágio. Porque reduzir a vida a apenas isso é, para mim, o cúmulo da imoralidade!”

“Aí está! Sua missão cósmica é rigorosamente contrária. Você sente dentro de si, com idêntica religiosidade, um mandamento de inquietude, de movimento e de criação. Tampouco eu poderia ter simpatia pela norma vital de um burguês, que pensa ter feito o suficiente apenas por cuidar bem de seu negócio, de sua paz de espírito mantida a custo de uma redução e uma fuga de qualquer coisa que pareça uma ampliação de seu mundo por meio de novas ideias”.

“Agora sim, amigo, você está partindo para a imoralidade do radicalismo…”

“Não! Eu não pretendo que o burguês abandone sua moral; apenas pediria que me deixasse em paz com a minha. Essa coexistência de mandamentos diametralmente opostos é expressa no entendimento que o hinduísmo tem do dharma. Na religião hindu cabem todas as crenças, todas as doutrinas; o hinduísmo não é dogmático. Só há uma verdadeira exigência: o cumprimento dos deveres ritualísticos. Cada casta tem um repertório de ações permitidas e obrigatórias, um dharma, ao qual precisam, obrigatoriamente, se ajustar, porque se constitui na lei última do universo. Cada indivíduo pode chegar à perfeição dentro de seu próprio dharma, e não pode chegar a ela por nenhum outro caminho. O brâmane tem sua moral de meditação e ascetismo; o ksatriya, ou guerreiro, tem a sua moral de ferocidade e combatividade. Até os deuses estão submetidos a um rigoroso regime: eles têm de se comportar feito deuses. O ilícito é cometer a transgressão de um dharma e entrar na área do outro. O comportamento indevido acarreta na reencarnação em uma espécie inferior. Não me digam que essa não é uma moral rigorosa. Desde o início dos tempos, como realidade última do universo, como a única coisa que dá a ele uma indestrutível consistência, foram prescritos os deveres ritualísticos de cada ser humano. O deus Bramha ensinou a gigantesca lista de normais vitais aos outros deuses, expondo-a em cem mil capítulos, segundo nos informa o Mahabharata. Em vez de instaurar um perfil único de correção moral, anulando a riqueza do universo, o hindu respeita e aceita a maravilhosa pluralidade do mundo; e, em princípio, como indica Weber, admite uma moral para a prostituta e para o ladrão. Em contrapartida, não permite o menor deslize dentro de cada estatuto moral. Um dos homens mais santos, o rei Vipasheit, foi condenado a terríveis castigos infernais por ter esquecido de dormir com uma de suas esposas numa noite especialmente dedicada à concepção. Não há escapatória. O velho poema diz isso de modo particularmente belo: Do mesmo modo que o bezerro encontra sua mãe entre mil vacas, o pecado sempre encontrará o seu autor. Pois bem, amigo meu: seu dharma é jogar golfe, assim como meu dharma é o da escritura e da conversação. Quando eu o observo em seu aspecto tão saudável e jovial, vestido impecavelmente e balançando tão bem o taco de golfe; você me parece um ser perfeito, que honra e decora o universo. Porém, se eu assumisse idêntica postura e fizesse esses movimentos, eu me veria como uma séria e perigosa objeção ao bom ordenamento do cosmos.”

“Você é um doutrinário”, disse o fauno que acabara de receber meus elogios.

“Acredito que eu seja exatamente o contrário. Não é a noção do dharma um sublime empirismo da moral? O que eu defendo é que não há ato algum que não tenha suas conseqüências, e o que é bom para um, pode ser mal para outro. Talvez fosse melhor se trocássemos a monotonia contemporânea que sufoca qualquer discussão ética baseada no tremendo peso da palavra moral pela elegância superior com que os antigos diziam quod decet, aquilo que cai bem, que é correto, que é decente. Pois bem, acredito que não só cada ofício, mas também cada indivíduo tem sua decência intransferível e pessoal, seu repertório ideal de ações e gestos devidos.”

Mas foram argumentos em vão… Meus amigos haviam desaparecido. Minhas palavras haviam dispersado o afetuoso grupo? Não. A razão da fuga era outra. O golfe é tão inexorável quanto a mecânica celeste; e na hora determinada, os grupos se formam com exemplar pontualidade. Nem a amizade ou o entusiasmo são suficientes para reter os jogadores. A varanda estava deserta. Apenas Alicia, com seu coração de oscilações máximas, continuava ao meu lado.

“Ah, Ninfa sublime! O que agora você está fazendo é o mais sublime de tudo. Em vez de ir jogar, prefere ficar em minha companhia; quer dizer, sacrifica seu dharma desportivo em favor de meu dharma discursivo.

“Sabe o que é? Ontem, ao descer do carro, torci meu tornozelo; e, por isso, não agüentaria caminhar pelo campo.”

“Ah, claro.”

 

 Marco Frenette é editor da revista Golf Life e autor dos livros Fundamentos da Cultura Golfística e A Etiqueta do Golfe

marco.frenette@gmail.com

 

 

O ponto de vista dos colunistas não expressa necessariamente a opinião da CBG.

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